Memorando, mirabolando, de Luiz Pacheco


















Contraponto, 1995
1000 exemplares numerados e assinados

(...)
Esta questão da minha nótula, sem a revisão final, que não fiz por via da bêbeda e da chatice em que me chocaram os cortes da Censura e estes em si, ficou uma merda. Mas esquecerá, ou é pecado venial (por outra visão, minha, me honra: não pretendia dinheiro nem reclamo, mas retribuir as finezas daqueles todos do Centro de António Flores, a começar logo pela drª Odília Castelão, sem o que eu já estaria doido de todo, ou inválido, ou suicidado ou não sei como, há mais de 2 anos que me amparam e agora, creio, me farão tudo o mais, e foi por este impulso que a coisa começou, na bêbeda depois de ver A Morte em Veneza e ter sugerido ao Carlos aquilo que eu próprio podia fazer sozinho (mas a solução achada e praticada foi mais feliz), depois propondo-lhe, também por súbita inspiração, que ele logo agarrou, o meu depoimento, esta entrada no jornalismo magazinesco pipular (excluíndo a Notícia, onde o caso e as circunstâncias 3 anos atrás eram bem outras - a fome, a camaradagem e ternura (onde isso vai!) da Edite Soeiro para comigo) tem aspectos positivos:

- como experiência de escrita, inda que tosca e mal acabada, foi uma lição. Aspecto já sublinhado: no Século Ilustrado há mais censura oficial, na Notícia a merda do conjunto, a má-fama colonialista da revista, a menor projecção metropolitana (que é a que me interessa fundamentalmente), a obstrução da Edite. Claro, não é com coisinhas destas que poderei mostrar à Isabel, em rivalidade profissional, o que valho, que foi o que pretendi no Diário de Notícias há um ano, dar-lhe um bigode, uma ensinadela à caloira petulante que eu vira sair da casca, tão gira nesses traques de estreante! Mas a Isabel, agora, passou para arquivo. Deixou de ser a minha estrela polar. E desde ontem, menos. Ou nada. Ou menos que nada.
- efeito na revista Notícia. Veremos. Mas marquei um ponto meu. A reportagem-inquérito (se se fizer e como eu quero) sobre as cadeias é que já os pode abalar. Não o demonstram. É como o Rodinhas e mais malta, no caso do trecho publicado no Diário de Notícias. Como eu ontem tentei explicar ao Henrique e à Lena mas a conversa não foi longe, eu a aparecer em sítios donde, por todos os meios (e isto não é mania da perseguição; apoio-me em factos concretos), me escorraçaram, aliás sem que eu fizesse o mínimo esforço para os contrariar, forçando-os, insistindo, humilhando-me ou usando truques, os deles - isso era o que queriam, é uma vitória. Nem sequer desforra. Não vou ficar. Fui, mas só agora ou desde há poucos anos, solicitado e insistido, e chegou já por várias vezes, a minha altura de abanar que não a cabeça. É como a entrada da China na ONU. É o reconhecimento unânime da minha força, da injustiça que representa a táctica do abafador que eu detectara logo nos meus 20 anos e comecei a furar, de fora, sem lhes pedir nada, com o Contraponto meu e só meu e onde só eu mando. E donde os fui então excluindo, com a certeza inicial que nada se destrói em definitivo que não se substitua. Foi por esta táctica de preservar as rectaguardas e ir fazendo fogo com a artilharia à distância, cansando-os em guerrilha mais implantando novas estruturas que os fodi. Aí estão: o Cesariny, o Herberto, o Lima, a Natália, até mesmo o Alcambar. Não falando no Lisboa, no José Aurélio e no Manuel de Castro que, eu podendo, irão reaparecer em grande força. E até no António Tavares Manaças.
- vontade de intervenção, fora da literatice mas pela escrita ou Literatura. Uma experiência que me lembrei era recortar em paralelo com o meu tosco, propositadamente linear e directo, (quase) improvisado texto com as patacoadas que a Natália, Cesariny, etc., lançaram nesta mesma semana. Perante a comunidade portuguesa interessará mais o inquérito sobre o barroco ou um depoimento sobre o alcoolismo? as gracinhas gagás do Mário ou um problema que atinge todos (cá em casa, só escapa o puto: eu, H-L, Jovite somos todos vítimas, mais ou menos conscientes ou recuperáveis (e vítima, inocente essa, também é o puto e ele sabe-o) do paraíso artificial do álcool. Ainda ontem os vi beber, de seguida, com o propósito firme da bêbeda, amêndoas amargas e cervejas. Frustração e qual? mas eles andam nos 20 e tantos, o Jovite tem 37 parece 57. Multiplique-se isto por 8 milhões!
Este meu desejo de intervenção, tal como agora a reedição do Libertino, e - sei-o bem - com balas de borracha, não é graça. É uma aposta. Não por acaso. Como não por acaso a outra maluca da Natália propagandeia os barrocos, os Baías da Fénix Renascida. É à decadência que aspira, aonde se instala. A estes nem é preciso empurrar: caem, esbarrondados, de per se. Alegria minha nenhuma e até me fazem falta. Mas pegar-lhes ao colo, falta-me a paciência e a força. Até já o fiz, noutros tempos, forte estúpido! Voltando à formula do Gasset: mirada de zoólogo. Pois esta semana, com a chegada do Vítor, encontros inevitáveis (e para quê evitá-los?) com ele, Teresa, Zé Dantas, Isabel, Elsa, Manuel, o prof. alemão, os tipos da Estampa, não terei de usar apenas (e registar, depois, sendo significantes) o que neles vir? e como eu agir, entretanto? espectador de mim e é o que mais me importa.
A verdade é que observá-los, dizer uma piada ou duas, mesmo escrevê-las já sei que não os afecta. Eles já escolheram. Essa luta estúpida travei-a com Cesariny, Lima, Natália, uma dúzia doutros. Ficaram na mesma, isto é, foram às suas vidinhas. Comigo cá dentro é que não. Ainda aqui mo confirma o Ortega (op. cit. págs. 150-51). Vivemos de dentro para fora. Problema decisivo para uma ciência do carácter. Diz ele: «A personalidade experimenta no decorrer da vida duas ou três grandes transformações, que são como estádios diferentes de uma mesma trajectória moral. Sem perder a solidariedade, melhor a homogeneidade radical com o nosso sentir da véspera, um dia percebemos que ingressámos numa nova etapa ou modulação do nosso carácter». A este chama (ele, Ortega) «câmbio radical». Mas isto implica uma atenção constante sobre si próprio. Andaria eu buscando, desde há mais de um ano, com mais precisão: desde o choque com o mundo da Elsa e o que me provocou a ameaça de embolia e a longa intermitente de recaídas convalescença de meses posterior, afinal são razões para me modificar e aproximar-me, penetrar vitalmente noutra órbita ou para me afirmar mais seguro da minha?
Dúvida que terei de esclarecer e esta semana talvez me proporcione dados curiosos. Ontem, por exemplo, o Calmon contou uma historieta de um puto que fazia 17 anos e queria ter relações, as primeiras, com uma mulher (ao que a Teresa se teria logo oferecido como voluntária, - a libertina! à caça de primícias) são caricaturas de um tipo sentimental que eu já não conseguirei preencher mas cujo arquétipo 1971 poderei, talvez, definir em teoria em oposição a estes outros que me rodeiam e são (serão apenas?) talvez também caricaturas de um outro sentido de vida no estar conviver e amar que, em Portugal, e na gentinha que conheço, não me presta. Há que procurar outra gente. Ou brutos selvagens, mas certos na sua inocência (aventura à Gauguin, a tentar ou na Beira, ou Minho ou África); ou hiper-civilizados produtos da sociedade de consumo de que a Teresa (e também a Luísa Lemos) já me parecem reflexos a sério. Mas com muito húmus lusitano a desbastar, talvez nunca.

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